terça-feira, 30 de julho de 2013

ARTE + COTIDIANO - Edição número 11



Como podemos relacionar as artes visuais com as experiências do cotidiano? Quais são os elementos marcantes nas artes visuais que podem ser percebidas nos eventos diários ou na história?

Através da série de artigos ARTE + COTIDIANO propomos um exercício de percepção, de sensibilidade... Estimular o pensamento por conceito. Trabalhar a mente para fazer analogias. Ampliar sua criatividade. Em tudo enxergar a arte! A seguir, o Número 11!

(obs: veja as edições anteriores diretamente no site do Centro de Artes e Design - no link "Design & Informação" -  www.artesedesign.com.br)


REFLEXOS
De Van Eyck a Magritte
Baseado na exposição "Reflejos",
do Museu de Arte Thyssen-Bornemisza, Madrid.
 

O ser humano sente o encanto pelo espelho desde os primeiros meses de sua vida.
Enfrentando sua própria imagem, a criança se torna consciente de sua própria existência e constrói sua identidade de sujeito, em um processo que Jacques Lacan denominou o "estado do espelho". A partir de ent"ao, como se tratasse de um novo Narciso, não poderá mais resistir à contemplação de seu próprio reflexo. Cristais, superfícies metálicas e, até mesmo a água, chamarão sua atenção em um exercício que trás à tona o desejo de observar-nos ao mesmo tempo que confirma nosso anseio de sermos outra pessoa. O espelho reflete o inverso do que vemos e, sem dúvidas, sempre desperta a turva sensação de estar escondendo algo.


Mais além de seu uso como recurso iconográfico, imagem de vaidade e luxúria ou de valores absolutos como a verdade, a sabedoria ou a pureza, neste texto agora pretendemos nos centrar principalmente em sua utilização como reflexão a respeito da própria representação pictórica e sobre os limites do quadro.
 
Durante séculos, a pintura ocidental aspirou superar seu caráter plano, mas foi especialmente a partir do Renascimento que a intenção de simular a tridimensionalidade física se converteu em uma das principais aspirações dos pintores. Para muitos artistas, o uso dos reflexos em suas obras foi a ferramenta mais refinada que utilizaram nesta luta contra a natureza plana do suporte pictórico.


Jan van Eyck - Díptico de la Anunciación - El arcángel san Gabriel, 1433-1435. Óleo sobre madeira, 38,8 x 23,2 cm. Museu Thyssen-Bornemisza. (à esquerda)
Jan van Eyck - Díptico de la Anunciación - Díptico de la Anunciación - La Virgen María, 1433-1435. Óleo sobre madeira, 39 x 24 cm. Museu Thyssen-Bornemisza.
 
O Díptico da Anunciação, de Jan van Eyck, datado entre 1433-1435, é um dos melhores e mais antigos exemplos da perfeição ilusionista a que chegou a pintura em Flandes durante o século XV. Toda a obra é um maravilhoso exercício de maestria, onde o artista utiliza técnicas de "enganar os olhos" para conseguir que as figuras pareçam sobressair da moldura que as acolhe. A técnica do sombreamento com tons de cinzas, que tenta imitar a escultura, põe-se a serviço deste fim junto aos reflexos. Van Eyck situa o arcanjo Gabriel e a Virgem frente a uma superfície polida que atua como espelho daquelas partes de seus corpos que ficariam fora do nosso campo de visão. Desta forma, vemos os drapeados traseiros de suas túnicas, ou suas cabeleiras ondulantes. O reflexo contribui para a perfeição da ficção, oferecendo-nos vários pontos de vista da cena, de maneira que podemos desfrutar de uma visão quase completa das simuladas esculturas, sem necessidade de rodeá-las. O artista, no que se considera uma tentativa de demonstração de superioridade da pintura sobre a escultura, mostra ao espectador tudo aquilo que se pode desejar: verso e anverso, tudo o que esconde o outro lado.

 Jan van Eyck - Díptico de la Anunciación - El arcángel san Gabriel (detalhe), 1433-1435. Óleo sobre madeira, 38,8 x 23,2 cm. Museu Thyssen-Bornemisza.




Mais adiante do mestre flamenco do século XV e seus contemporâneos que confiavam plenamente em sua capacidade para captar a realidade e transportá-la para o quadro com seus pincéis, o belga René Magritte, quinhentos anos mais tarde, questiona em suas telas a verdade desta percepção. O pintor surrealista serve-se da tradição pictórica ilusionista, iniciada precisamente por Van Eyck, mas com o objetivo de subverter a ideia da pintura como um reflexo verdadeiro do mundo real. Nos encontramos, portanto, com dois exemplos paradigmáticos que mostram o princípio e o fim de uma tradição.
 
René Magritte - La Clef des champs, 1936. Óleo sobre tela, 80 x 60 cm. Museu Thyssen-Bornemisza, Madrid.
 
Em La Clef des champs de 1936, Magritte nos situa frente a uma janela, metáfora por antonomasia do quadro, pintura típica do Renascimento, e através do qual vemos uma plácida paisagem. Algum objeto do exterior acaba de impactar-se contra o vidro e o quebrou em vários pedaços. Até aí tudo ocupa o seu devido lugar. Todavia, quando nossa visão se detém nos pedaços caídos, observamos que ainda refletem fragmentos da paisagem que seguimos vendo através do vão. O reflexo é precisamente o elemento que converte a tela em um enigma visual que nos perturba. Como o cristal, a pintura "quebrou-se", abandonou seu papel de reflexo do visível e se converteu em um instrumento do artista para demonstrar a ambivalência da realidade e ficção. Por que? Quem nos garantirá agora que a paisagem que vemos através da janela é autêntica?


E você? Quando te olhas num espelho, ou quando o penduras na sala ou no quarto...esperas ver a realidade?
 
Profa. Arq. Maria Pilar Arantes
CENTRO DE ARTES E DESIGN